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Terra Sonâmbula

O que já está queimado não volta a arder.



Este é um dos muitos, muitos livros que, à medida que lia, me levava a interrogar-me o porquê de não o ter lido antes. Numa palavra: mágico.

A premissa é simples: um rapaz novo e um velho encontram-se sozinhos, fugindo da guerra em Moçambique, e abrigam-se num autocarro incendiado, um próprio retrato da guerra, cheio de corpos queimados, dos pertences dos mesmos passageiros. O rapaz, Muidinga, não tem memória, e é Tuahir, o velho, que cuida dele. Muidinga quer encontrar os pais, Tuahir tenta dissuadi-lo.

O que Muidinga encontra, no autocarro, são os diários/memórias de um passageiro, Kindzu, que se tornam no entretém e consolo da dupla. A partir daqui, a narrativa alterna entre o dia-a-dia de Tuahir e Muidinga e os diários de Kindzu, um entrelaçar de sequências de sonhos, com terror, com realismo mágico, cheios de crenças e tradições populares. É uma guerra descrita sem cenários de guerra, mas pelas suas pessoas, perdidas, sem terra. 

A própria terra anda sem saber e sem destino, adormecida, sonâmbula.

Não. Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu.

Todos neste livro são órfãos de alguma coisa, de pais, de terra, de crenças, de algo que perderam, e nem a morte traz consolo. É tudo doloroso e desesperado.

Muidinga e Tuahir vão fantasiando com os cadernos e as realidades de Kindzu, que partira para se tornar naparama, guerreiro, e esta fantasia aproxima os dois desconhecidos. Ambos aprendem um com o outro, ambos sobrevivem juntos. Com Kindzu aprendem a sonhar numa altura em que a esperança parecia ter-se esvaído.

A estrada não traz ninguém. Enquanto a guerra não terminasse era mesmo melhor que nenhuma pessoa estradeasse por ali. O velho sempre repetia:
- Alguma coisa, algum dia, há de acontecer. Mas não aqui, emendava baixinho.

As duas narrativas, inicialmente distintas, acabam por se cruzar e misturar, não só porque a guerra as junta mas porque o destino as juntou. Mais importante do que a história em si é a forma como esta é contada, a linguagem maravilhosa utilizada, a forma como os eventos surgem, se juntam, se terminam sem o leitor se aperceber.

Aquele momento confirmava: o melhor da vida é o que não há-de vir.

5/5

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