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O Perfume

Da série "coisas que toda a gente leu quando/porque saiu um filme há uns anos, excepto eu, porque me lembro de excertos que li quando era pequena e a minha irmã o leu para a escola". Também da série "não consegui encontrar o livro durante meses e pensei que a minha irmã o tinha levado com ela quando mudou de casa". *


O meu maior defeito é possivelmente assumir que toda a gente viu o filme de tudo. Eu este nunca vi, como aliás de costume, mas lembro-me de ter saído. Mas neste caso o título do livro é tão explícito que acho que não me tenho de preocupar muito com spoilers.

No século XVIII viveu em França um homem que se inseriu entre os personagens mais geniais e mais abomináveis desta época que, porém, não escasseou em personagens geniais e abomináveis.

Jean-Baptiste Grenouille é um órfão nascido em Paris em 1738, numa banca de peixe, o quinto filho de uma mulher que deixara todos os seus filhos morrer à nascença - sendo quase imediatamente presa por abandonar a criança e posteriormente enforcada. Grenouille é levado para a igreja, que o baptiza e entrega a uma ama, que se sente completamente horrorizada pela falta de cheiro da criança e acha que esta está possuída pelo diabo. É então entregue a um orfanato, no qual também causa repulsa:

Não o odiavam. Também não sentiam ciúmes dele nem lhe invejavam o que comia. Não havia lugar para este tipo de sentimentos na casa de Madame Gaillard. Era simplesmente a presença dele o que os incomodava. Não podiam cheirá-lo. Provocava-lhes medo.

A estranha relação de Grenouille com cheiros é aumentada pelo facto de este ter um sentido de olfacto muitíssimo apurado. Isto é fascinante porque ele se interessa pelo cheiro de coisas como pedras, maçanetas de portas, coisas cujo cheiro passa ao lado de toda a gente diariamente - e coisas que a maioria das pessoas acharia repugnante. Como peles: quando o padre deixa de pagar ao orfanato, Madame Gaillard vende-o a um curtidor de peles; posteriormente, Grenouille consegue tornar-se aprendiz de um perfumista em decadência, ao mostrar uma forte aptidão para misturar aromas e criar novos e bons perfumes.

Algo que achei curioso é como Grenouille é, de forma subtilmente descrita, uma espécie de maldição para aqueles que o acolhem ou se envolvem com ele: todos os que o acolheram ou que o empregaram acabam de alguma forma mal, ou de forma oposta àquela que esperavam. Por onde passa, leva sucesso passageiro e desgraça certa.

Grenouille sabe que não é normal - mas a sua obsessão não ganha contornos tão reais até ao seu primeiro homicídio:

Uma rapariga estava aí sentada a preparar ameixas. Retirava a fruta de um cesto à sua esquerda, descascava-a e descaroçava-a com a faca, após o que a deixava cair numa selha. Podia ter treze, catorze anos. Grenouille conservou-se imóvel. Apercebeu-se imediatamente que era ela a fonte do perfume que cheirara a meia légua, da margem oposta do rio; não era aquele miserável pátio interior, nem as ameixas. A fonte era a jovem.
(...)
Grenouille tomou consciência que, sem a posse desse perfume, a sua vida perderia todo o sentido. Precisava conhecê-lo até ao mais ínfimo detalhe, até à última e mais subtil das suas ramificações; não lhe bastava a recordação complexa que dele pudesse guardar.
(...)
Não viu Grenouille. Sentia, porém, uma angústia, um estranho calafrio, como quando se é repentinamente tomado de um antigo medo vencido.
(...)
Ficou tão petrificada de medo ao avistá-lo, que ele dispôs de muito tempo para lhe colocar as mãos à volta do pescoço.
(...)
Quando ela já estava morta, estendeu-a por terra, no meio dos caroços das ameixas, e arrancou-lhe o vestido; a onda de perfume transformou-se numa maré que o submergiu. Encostou o rosto à pele dela e passeou as narinas dilatadas desde o ventre ao peito e ao pescoço, sobre o rosto e os cabelos, regressou ao ventre, desceu até ao sexo, às coxas, ao longo das pernas brancas. Farejou-a integralmente da cabeça às pontas dos pés, e recolheu os últimos traços de perfume no queixo, no umbigo e nas covas dos braços cruzados da jovem.

O seu nariz é a sua forma de orientação, no qual confia mais do que nos outros sentidos, na visão, na audição. Ele vive para sentir os vários perfumes, para identificar e desconstruir as camadas em cada coisa que cheira. Eventualmente, o seu dom leva-o a sentir-se horrorizado pela sua falta de cheiro e a querer mascarar essa sua falta de identidade - e, na memória dessa jovem, a querer criar o melhor, o mais único perfume alguma vez conhecido ou feito.

E no perfumista que o emprega em Paris, ele sente os seus dons limitados. Aprende que mais a Sul há outros métodos que ele pode aprender, e ruma ao seu destino. Há muita coisa no meio do livro que é um bocadinho aborrecida - mas eventualmente ele chega a uma nova cidade, Grasse, onde se consegue meter como aprendiz de um outro perfumista e aprender novas maneiras de conservar cheiros.

É extraordinariamente determinado na sua missão, que o leva a assassinar várias jovens, na sua busca desesperada pelo perfume perfeito; e, pela sua falta de cheiro, ninguém repara nele ao longo de praticamente toda a sua vida - em criança ninguém queria saber dele, em adulto só era tolerado quando alguém podia tirar proveito financeiro dele. E ele tira proveito disso, pois ninguém se apercebe da sua presença a não ser que ele queira, a não ser que ele use os seus cheiros humanos artificiais, cada um criado para um propósito. Ele controla as pessoas pelo cheiro.

O Perfume é um livro de suspense - embora saibamos, desde o título, quem é o assassino, quem é culpado, ao longo do livro uma pessoa interroga-se sobre se Grenouille será levado à justiça - e se sim, como.

Grenouille é obviamente uma criatura abominável, como dito no início do livro (como citei um bocado acima), frequentemente comparado a uma carraça, sentado à espera, tirando sem dar, aproveitando-se de tudo o que consegue; porém, apesar das suas acções, desperta alguma pena.  Não tem cheiro, mas toda a sua compreensão da vida e da beleza é através do olfacto. Até começar a matar, não tem qualquer compreensão de compaixão ou do amor. Quando consegue alcançar o seu sonho, apercebe-se que não é aquilo que ele esperava - o que é algo com que acho que muita gente se consegue identificar (embora, espero, sem a parte dos homicídios).

Sim, ele era o Grande Grenouille! Era bem visível nesse momento. Era-o agora, na realidade, como nunca o fora nos sonhos em que se amava a si próprio. Neste momento, vivia o maior triunfo da sua vida. E sentia que este triunfo se tornava assustador.
Tornava-se assustador, na medida em que não podia usufruí-lo um segundo que fosse. No momento em que descera da carruagem para a praça inundada de sol, revestido do perfume capaz de causar amor nas pessoas, do perfume no qual trabalhara dois anos, do perfume que toda a vida ansiara por possuir... desde esse momento em que vira e cheirara como ele actuava irresistivelmente e, espalhando-se à velocidade do vento, cativava a gente em seu redor, desde esse momento, voltara a ser invadido pelo seu nojo pelos homens, o que lhe estragava tão profundamente o seu triunfo que não sentia qualquer alegria, nem sequer o mínimo sentimento de satisfação. Aquilo que desde sempre tinha constituído a sua ambição, ou seja, que os outros o amassem, tornava-se-lhe insuportável no instante do sucesso, porque ele não os amava, odiava-os. E apercebeu-se, subitamente, de que jamais encontraria a sua satisfação no amor mas no ódio, o ódio que transmitisse aos outros e que os outros lhe transmitissem.

O final do livro é completamente insano, inesperado, surreal mesmo. Mas neste livro faz sentido, faz todo o sentido, e torna-se mais triste ainda por causa disso.

4/5

Podem comprar esta edição aqui, ou em inglês aqui.



* Agora só me falta descobrir o paradeiro do clássico Alanis.

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